Hipnose e Psicologia Clínica: Retomando a História Não Contada Hypnosis and Clinical Psychology: Bringing Back the Untold History Maurício da Silva Neubern* Centro Universitário de Brasília, Brasília, Brasil
Abstract
The present article points out various relations between clinic psychology and hypnosis, highlighting that a
great part of both has remained well unknown by the great majority of clinic psychologists. On one hand, this
article aims at historical outcomes of this relation, which despite having been put aside and forgotten, takes us
back to the institutional practices taking place in this field of psychology. On the other hand, it intends to
briefly bring about that the reflection over hypnosis might present clinic psychology with epistemological,
institutional and practical reforms of the highest relevance, especially in terms of making hypnosis function in
sync with important present discussions on the scientific scenery. Finally, this article states that for its own
characteristics as a subject of study and reflection, hypnosis radically incites the building up of some knowledge
where self-actualization is made possible, which breaks up with the modern tradition of scientific thinking.
Keywords: Hypnosis; clinic psychology; history; epistemology.
A perspectiva de unificar clínica e ciência trouxe um problema considerável para a psicologia clínica: não seria possível efetivar um acesso privilegiado e único ao real, já que
esse ramo da psicologia se encontrava dividido em diversas
escolas. Como as exigências do paradigma dominante rezavam o acesso a uma realidade única (Demo, 1997; Morin,
1991; Santos, 1987) tal diversidade colocava a psicologia
clínica numa posição incômoda já que não havia meios que
pudessem garantir a hegemonia de uma escola sobre as outras. Não lhe havia sido possível a fabricação de um contexto
como o laboratório, em que os pareceres distintos e contrários
deveriam ser calados diante das provas experimentais
(Neubern, 2004; Stengers, 1995). Tal quadro trouxe uma
contradição incômoda, pois enquanto a psicologia clínica ganhou espaços sociais e reconhecimento científico, ela jamais
pôde atingir, como não o puderam as ciências humanas e
sociais, o status da confiabilidade científica das ciências duras,
permanecendo a meio caminho de um reconhecimento integral (Neubern, 2003). As conseqüências desse mal estar
podem ser compreendidas sob duas dimensões altamente
integradas. Por um lado, as noções dominantes do projeto científico foram adotadas de modo particular pelas diferentes escolas, que lhe conferiram uma compreensão própria e
continuaram alimentando as rivalidades entre si. O
isomorfismo, a tendência universalista e a ênfase no patológico consistiram em noções constantes em praticamente todas
escolas de inspiração moderna (Gergen, 1996; Neubern, 2001).
Mas, ao mesmo tempo, como essa pretensão de acesso
isomórfico ao real mantinha-se questionável, a autoridade
dos mestres fundadores ganhou relevo cada vez maior, o
que conferiu grande influência à dimensão institucional.
É justamente nesse ponto que o tema da hipnose assume
uma considerável importância, pois toma para si um papel
de denúncia das contradições e fragilidades existentes na
tentativa de uma psicologia clínica enfim científica (Chertok
& Stengers, 1999; Stengers, 2001). Associando-se a noções
epistemológicas marginais como a influência (ao invés da
neutralidade), o passageiro (ao invés do definitivo), a criação (ao invés do fato) e o ilusório (ao invés da essência), a
hipnose se tornou um objeto de estudo ameaçador capaz de
colocar em risco os já comprometidos alicerces que os psicólogos começavam a construir em sua pretensão de ciência.
Em termos de instituição e práticas sociais, essa denúncia
também mostrou que, sob bases precárias, muitos acontecimentos históricos foram negados ou obscurecidos em nome
de um conhecimento científico que integralmente jamais foi atingido. Em outras palavras, em nome da própria razão
foi preciso que muitos argumentos fossem evitados, uma
vez que esses poderiam levar a incisivos questionamentos
sobre a coerência dessa mesma razão.
Sendo assim, o objetivo deste artigo é, de início, o de
destacar criticamente alguns acontecimentos históricos ligados à relação entre hipnose e psicologia clínica que poderiam levar a reflexões pertinentes sobre essa ciência, mas
que foram estigmatizados ou jogados ao esquecimento. Tratam-se especificamente de obras e concepções de certos autores (Bernheim, 1891/1995; Bertrand, 1823 citado em
Carroy, 1991; Delboeuf, 1890/1993) que, apesar da relevância clínica e teórica, não ganharam espaço e reconhecimento históricos, como não puderam impedir a construção
dos mais diversos preconceitos sobre o tema. Uma vez que
levanta essa dimensão esquecida, o artigo também buscará
destacar brevemente a pertinência da hipnose como um tema
que poderá trazer para a psicologia clínica reformulações
fundamentais em termos de práticas institucionais e princípios epistemológicos. Nesse sentido, as reflexões levantadas pela hipnose não só colocam a psicologia clínica em
sintonia com as discussões recentes sobre crises de
paradigmas na ciência (Demo, 1997; Morin, 1991; Santos,
1987, 2000; Stengers, 1995), como ressaltam que sua relevância como tema de estudo é bastante atual (Borc-Jacobsen
& Dufresne, 2001; Chertok & Stengers, 1999; Melchior,
1998; Neubern, 2004; Stengers, 2001; Zeig, 1985/1997).
Deve-se fazer aqui uma pequena ressalva em função da
ênfase conferida à psicanálise de Freud (Salomão, 1996),
como uma das principais origens da psicologia clínica.
Embora seja possível conceber outras origens dessa disciplina, como Witmer (Schultz & Schultz, 1969/1981) e
Lagache (Levy, 1997), preferiu-se manter a psicanálise como
um dos focos centrais da reflexão devido à sua relação histórica com a hipnose e sua influência ainda bastante presente,
difundida e atual em diversos contextos e instituições da
prática clínica de diferentes escolas1
.
O Golpe de Força
A relação entre hipnose e psicologia clínica pode ser
compreendida como um processo que se iniciou no entusiasmo e culminou no ostracismo. Essa trajetória, a bem dizer
abrupta, pode ser reconhecida em Freud sem maiores dificuldades, pois o método inicialmente eleito por ele para a
cura dos doentes nervosos (Freud, 1888-1892/1996a), ao
longo de seu trabalho, passou a ser considerado como algo
oposto e até indesejável à consecução de um conhecimento
confiável e efetivo em termos de terapia e ciência (1905/
1996b, 1917/1996d). Os impactos desse processo para o
reconhecimento da hipnose em termos clínicos e
epistemológicos foram drásticos em diversos sentidos
(Neubern, 2004). Por um lado, ela se tornou uma espécie
de tema maldito, com a qual a psicologia clínica só poderia reconhecer parentesco nos livros de história. Não é sem
razões que as não muito numerosas referências que lhe
são conferidas (Figueiredo, 1992; Marx & Hillix, 1963/
1978; Schultz & Schultz, 1969/1981) a situam como um
passado longínquo e pré-científico, como um tema já superado que praticamente não encontra espaço nas escolas
dominantes e discussões atuais. Contudo, o estigma da
maldição também passou a incidir sobre a hipnose em termos
de abordagem e técnica, situando-a como técnica ineficaz
e superficial que jamais atingiria a causa dos problemas,
permitindo a substituição de sintomas, como um procedimento caracterizado pela submissão ao terapeuta, como
um processo vicioso e que poderia induzir a condutas perigosas (Melchior, 1998; Yapko, 1992). Enfim, além dos
riscos com as quais estaria implicada, a hipnose não teria
nada a acrescentar diante da diversidade de escolas e técnicas desenvolvidas após sua derrocada.
No entanto, o que muitas vezes passa desapercebido
nas discussões sobre a ciência relacionada a temas complexos como esse é que além das certezas freqüentemente
existem as contradições que são evitadas e escondidas para
que essas mesmas certezas não sejam ameaçadas. Tal é o
caso da relação de Freud (1917/1996d) com a hipnose.
O que o perturbava sobremaneira não era apenas a eficácia duvidosa do procedimento, mas principalmente a
confiabilidade das lembranças evocadas pelos sujeitos
(Chertok & Stengers, 1999). Isso porque havia sempre presente a perspectiva de que essas lembranças fossem frutos
de mera sugestão ou da complacência dos sujeitos em relação a seus estimados médicos. Foi assim que a noção de um
inconsciente independente que resiste ao outro ganhou
um papel fundamental, pois ao mesmo tempo em que
poderia resistir ao desejo e às sugestões do terapeuta, ele
estaria além das intenções e da vontade dos próprios
sujeitos, podendo até contrariar as expectativas de ambos
(Chertok & Stengers; Stengers, 2001). Desse modo, o inconsciente psicanalítico ganhava o estatuto de um legítimo objeto de estudo, podendo comparar o setting analítico
a um laboratório clínico que, embora rompesse com a psicologia experimental em muitos aspectos, apresentava como
esta a pretensão de um conhecimento confiável e superior aos
demais. Sendo possível um acesso confiável e realista ao
mundo psíquico além dos sintomas e aparências, seria possível também esperar um processo de cura mais efetivo e
confiável, tal como o pretendia o cientista no que se refere ao
controle dos fenômenos da natureza. Nessa perspectiva, podem ser encontradas, ao longo da obra de Freud (1905/
1996b, 1912/1996c, 1917/1996d), importantes passagens
que asseguravam a superioridade e oposição do método psicanalítico quanto aos métodos sugestivos.
Entretanto, o golpe de força consistiu em uma espécie de
distanciamento sistemático quanto a questionamentos que
poderiam ser subversivos ao edifício nascente da psicanálise.
De um certo modo, a própria noção de transferência, que
falava de um interjogo de forças com o inconsciente, poderia abrir questões incômodas no sentido de fazer ressaltar
que o processo não se tratava simplesmente de uma revelação do mundo psíquico, mas de uma influência mútua que
não deixava de lado seu parentesco com a sugestão (Chertok,
1989). Não é sem razões que alguns autores da reflexão
pós-moderna (Gergen, 1996; McNamme & Gergen, 1995/
1998) fazem uma crítica acentuada à reprodução de discursos e narrativas que os clientes passam a fazer a partir de
uma relação terapêutica, o que não deixa de recolocar em
questão o problema da complacência. Ou seja, mesmo que
as psicoterapias em geral possuam uma proposta realista
elas não consistem em um laboratório, mas implicam em
relações humanas onde não é possível escapar das influências e sugestões mútuas.
Contudo, esse não era o único ponto polêmico. Já ao
final de sua vida, Freud (1937/1996f) destacou que as
curas operadas pela psicanálise não seriam mais efetivas,
duradouras e convincentes do que as de outros métodos.
Isso não propiciou o mesmo impacto epistemológico do afã
científico inicial e, em conseqüência, não permitiu que o
problema da hipnose fosse revisitado. Embora o acesso
privilegiado ao psíquico pretendido pela psicanálise fosse colocado sob suspeita, a maldição sobre a hipnose estava já lançada e a instituição psicanalítica dela dependia
sobremaneira para se manter firme. Importava apenas que
o Freud (1905/1996b) inicial da psicanálise se mantivesse vivo no seu projeto de desvendar de modo confiável e
científico as profundezas do inconsciente, de tal modo que
nem mesmo o fundador da psicanálise pudesse revisar certos pontos de suas próprias construções (Chertok &
Stengers, 1999).
Assim é possível perceber que o casamento entre a instituição psicanalítica e a noção de realidade foi decisivo para a
compreensão da hipnose como processo terapêutico falho e
objeto de estudo científico impossível. A hipnose era por demais ligada ao engano, à ilusão, ao incerto e ao fugidio das
relações humanas, sem contar que seu parentesco histórico
com o magnetismo e o espiritismo (Carroy, 1991; Meheust,
1999) pareciam transformar essa busca do real em um considerável pesadelo. Isso era bastante contrário à pretensão de
acesso a uma realidade a-temporal, invariável e independente do contexto sócio-cultural, tal como rezava a vulgata
da razão científica (Gonzalez Rey, 1996; Santos, 1987). Entretanto, esse mesmo tema impróprio consistia em uma denúncia contra o pensamento clínico nascente, que aspirando
se submeter a esta razão, evitava o diálogo e as incômodas
questões levantadas pela obra dos hipnotizadores. Assim, o
que realmente importava não era apenas isolar esse tema
impróprio, mas destiná-lo ao silêncio, situando-o em torno de
preconceitos que desestimulassem os eventuais impulsos da
própria curiosidade científica. A história da psicologia clínica precisava começar a ser escrita associada às luzes da razão
e livre de quaisquer máculas.
Alguns começos antes do começo
Alguns Começos Antes do Começo A atribuição do nascimento da psicologia a Wundt em 1879 (Marx & Hillix, 1963/1978; Schultz & Schultz; 1969/1981) traz uma questão importante sobre as relações dessa ciência com a hipnose. O que parece sugerir é que, enfim, a psicologia estaria ocupando um lugar de ciência, desvencilhando-se das heresias que poderiam abalar sua confiabilidade. A partir dessa data, boa parte das reflexões anteriores deveriam ser lançadas ao esquecimento ou ao título de curiosidade histórica, pois não poderiam contar com a confiabilidade dos métodos que buscavam agora embasar o projeto de uma psicologia enfim científica. Era uma vitória da racionalidade experimental, da vida de laboratório que finalmente poderia situar essa ciência como conhecimento válido na busca de acesso privilegiado ao real. No entanto, esse começo não deixava de ser contraditório até mesmo porque, reivindicando ser uma ciência enfim independente e com voz própria, a psicologia sempre esteve atrelada a outras ciências, como as ciências físicas, biológicas, sociais e humanas (Figueiredo & Santi, 2002), o que a colocava na delicada posição da diversidade de escolas de pensamento (Neubern, 2001, 2003). Esse considerável mal estar foi ainda mais agudo em termos de psicologia clínica que, além da diversidade de abordagens, contava com um contexto de trabalho e um conjunto de objetos de estudo pouco afeitos à prova experimental. Embora não abdicasse do projeto científico e estivesse imbuída de sua racionalidade (Chertok & Stengers, 1999; Neubern, 2001) o conhecimento clínico era, vez por outra, colocado sob suspeita a ponto de seus métodos serem considerados válidos apenas caso fossem restritos à prática clínica (Gonzalez Rey, 1996). Todo esse cenário levou a conceber uma curiosidade que, em geral, passou desapercebida: é provável que essa ciência, que nasceu frágil e duvidosa, tenha tido necessidade de renegar sua própria história para que pudesse manter alguma credibilidade. Se é verdadeiro o fato de que Freud (1905/1996b) não negou a relação histórica entre hipnose e psicanálise e que, apesar dos problemas, continuou seu interesse especulativo pelo assunto em alguns momentos de sua obra (1921/1996e), não é menos verdadeiro que fez um considerável esforço para separar psicanálise e sugestão (1912/1996c), numa explícita oposição entre o conhecimento confiável e o duvidoso. Com isso deixaram de ser considerados outros importantes momentos da origem da psicologia que poderiam, mesmo hoje, leva-la a significativas releituras epistemológicas, históricas e clínicas. É nesse sentido que se pode compreender uma das primeiras referências ao termo psicologia no pensamento moderno que remonta a Alexandre de Bertrand (1823, citado em Carroy, 1991) com a publicação do Traité du Somnambulisme. Nota-se que o jovem médico francês já apresentava um conjunto de concepções que remontavam a racionalidade ocidental e que justificaram o próprio nascimento de uma ciência psicológica, pois a medicina da época era insuficiente para a compreensão dos fenômenos magnéticos, hipnóticos e sonambúlicos. Rompendo com as noções mesmeristas, que preconizavam a ação de um fluído magnético nas curas, Bertrand se colocava na condição de um médico filósofo ou simplesmente psicólogo que buscava estudar a influência da imaginação nos processos terapêuticos, fossem eles somáticos ou psíquicos. Nesse ponto, seria possível considerar que aqui já constava o nascimento de uma ciência psicológica em moldes bastante similares à boa parte das linhas de pensamento atuais. A princípio, tratava-se de uma ciência que nasceu entre a medicina (natureza) e a filosofia (espírito), possuindo a perspectiva de um conhecimento novo que não se esgotasse em um desses lados. Contudo, outro ponto que chama a atenção foi a própria tentativa de se desvencilhar do magnetismo, atribuindo à subjetividade humana, por meio da imaginação, um papel central na compreensão e efetivação da clínica. Vale destacar que a obra desse autor propiciou o desenvolvimento de reflexões e antagonismos teóricos de toda uma geração de pensadores na França do século XIX, como Maine de Biran (com a noção de um ser consciente e inconsciente e a comunicação entre corações), Taine (com a multiplicidade do eu e as alucinações) e Bergson (com a comunicação telepática) (Carroy, 1991, 1993)2 . Todo esse movimento havia sido iniciado há mais de meio século antes de Wundt (citado em Schultz & Schultz, 1969/1981) e Freud (Salomão, 1996), mas não ganhou relevo e reconhecimento como um ponto de origem da psicologia, provavelmente em função dos temas malditos que havia escolhido como objetos de estudo e reflexão. Ao mesmo tempo, boa parte dos autores acima se baseou em métodos clínicos, o que também poderia denunciar sua inconsistência em termos de exigências, principalmente devido ao valor dado ao método em termos de ciência (Demo, 1997). No entanto, caberia também questionar sobre os motivos dessa rejeição, posto que a maior parte das escolas clínicas atuais não se utilizam de métodos substancialmente distintos. Esse afã científico ligado à hipnose também esteve presente numa das primeiras referências à psicoterapia que remonta a Hippolyte Bernheim (1891/1995) que a situou como um método sistemático e racional tendo como veículo principal as diferentes formas de sugestão. Ao longo de sua obra, esse autor sistematizou as aplicações clínicas da psicoterapia a diversos campos, como neuroses traumáticas, histerias, neuroses genitais, neurastenias, alcoolismo, nevralgias, reumatismo, dentre outros, ao mesmo tempo em que buscou teorizar sobre as formas de aceitação das sugestões pelo cérebro dos indivíduos. Embora reconhecesse sua dívida com os magnetizadores em termos de herança histórica e clínica, procurou desenvolver toda uma compreensão do processo hipnótico relacionando os tipos de sugestão com a atividade orgânica, principalmente do sistema nervoso central. Assim, seria possível compreender a psicoterapia como um processo que integrasse, de modo complexo, duas dimensões opostas na racionalidade ocidental: de um lado, a comunicação humana em suas diferentes nuances; de outro, os mecanismos cerebrais e orgânicos que poderiam transformar essas sugestões em processos de cura. Natureza e espírito estavam novamente sendo conciliados dentro de um projeto científico.
O que pode ser destacado desse cenário é que a obra de
Bernheim (1891/1995) foi caracterizada por uma dimensão que marcou todas as escolas de psicologia clínica: a tentativa de uma racionalidade científica. Entretanto, malgrado
seu esforço de separação do já condenado magnetismo, as
dimensões mais importantes de seu trabalho praticamente
não deixaram suas marcas na história dessa ciência, até
mesmo porque que esse autor é muito mais reconhecido
como um antigo professor de Freud (1917/1996d) cujas
concepções logo cederiam lugar a abordagens mais eficientes e racionais. Desse modo, o desinteresse dos psicólogos e
médicos por sua obra talvez pudesse ser compreendido em
torno de toda uma leitura institucional das comunidades
científicas (Carroy, 1991; Chertok & Stengers, 1999;
Neubern, 2004), mas, ao que parece, acabou situado na lista de concepções que fracassaram na abordagem do real.
Nesse sentido, pode-se notar que a obra de muito desses
autores foi pouco conhecida, estudada e problematizada pela
grande maioria dos clínicos atuais, o que não impediu a
criação dos mais diversos preconceitos sobre o tema. A compreensão da hipnose como um processo de submissão, ligado a um estado inconsciente e capaz de induzir os sujeitos a
atos imorais parece ter perdurado até os dias atuais, embora
tenha sido constantemente refutada por autores célebres do
passado. Tal foi o caso de Joseph Delboeuf (1890/1993).
Para ele a sugestão possuiria um papel importante no sentido de influenciar e transmitir importantes idéias aos indivíduos, mas, ao mesmo tempo, estes estariam dentro de uma
certa consciência (le moi inconscient), onde não abandonariam
o espírito crítico e a censura moral. Dito de outro modo, a
hipnose não implicava em mero estado de passividade, mas
em um estado onde o sujeito possuiria um papel ativo utilizando potenciais e recursos que habitualmente não estariam tão acessíveis. Assim, ao invés de um processo baseado
na autoridade do médico e na passividade do paciente (Freud,
1905/1996b), a hipnose terapêutica implicava em um processo onde a participação do sujeito era fundamental, principalmente em termos da utilização desses recursos na lida
com suas demandas. Seria redundante, neste ponto, ressaltar
a proximidade dessa idéia quanto às idéias atuais de boa
parte das escolas de psicoterapia, onde o sujeito, através do
acesso a seus potenciais, é ator no processo terapêutico
(Anderson & Goolishian, 1993). Outra contribuição interessante desse autor foi a respeito da própria noção de relação
terapêutica, particularmente por conceber que o terapeuta
também receberia considerável influência do sujeito por ele
hipnotizado. Mas, ao mesmo tempo, Delboeuf (1890/1993)
destacou que esse processo de influência permitiria a construção de settings essencialmente distintos, o que poderia explicar as diferenças de pacientes e fenômenos entre as diferentes escolas de hipnotismo da época, como a de Nancy e de
Paris. No entanto, sua obra não impediu que sobre a hipnose
fossem impregnados os estigmas da submissão à autoridade
do terapeuta e do sujeito alheio ao processo terapêutico. Ela
talvez tenha sido considerada como subversiva em demasia,
principalmente devido a suas noções de influência e suas
implicações críticas ao realismo dominante.
Esse conjunto de semelhanças entre as escolas clínicas
vigentes e as do passado levam a uma reflexão contundente e pesarosa, segundo a qual na história da ciência muitas
vezes todo o esforço por reconhecimento pode ser inútil
quando uma maldição já está lançada. Os hipnotizadores
do passado, como os clínicos do último século, buscaram
associar-se ao paradigma dominante, expulsar os mitos,
conferir um caráter de ciência a suas construções e organizar-se institucionalmente (Carroy, 1991; Chertok, 1989).
Ambos sofreram com as críticas de escolas rivais e até de
outras ciências, que, entre o sarcasmo e a convicção, colocaram em dúvida a cientificidade de suas propostas. Mas
sob os hipnotizadores pesavam outros fardos: a ruptura
que a hipnose efetivava quanto ao princípio do conhecimento de uma realidade perene e sólida consistia na condenação de todas as medidas que pudessem ser feitas em
nome da ciência, como também alimentava os mais diversos preconceitos e estigmas sobre a mesma. A diferença
talvez tenha sido a de que enquanto os clínicos tiveram
condições de fazer um acordo pouco convincente com essa
realidade, aos hipnotizadores não foi possível sequer uma
negociação nesse sentido.
A Retoma de um conhecimento sem respostas
Uma questão curiosa na história da hipnose é que, mesmo sem atender as exigências da cientificidade, ela sempre foi marcada pela eficiência terapêutica de suas abordagens por meio da obra dos mais distintos autores em diferentes épocas3 (Melchior, 1998). Mesmo não sendo convincente quanto à sua abordagem do real, seria possível comparar seu poder de promover mudanças com uma das principais pretensões da ciência moderna - a transformação da natureza - mas sem o conhecimento preciso promovido pelo método científico e sem os princípios da predição e do controle dos fenômenos. A própria posição de Freud, duvidando de sua eficiência, pode ser revista nesse sentido quando se considera seu desconforto e suas noções equivocadas quanto ao uso da técnica (Castilho, 2002; Chertok, 1989). O que faltava para a hipnose era justamente a obediência que lhe permitisse se transformar em um objeto domesticado, capaz de aceitar as imposições do laboratório ou do setting clínico, malgrado as precariedades de ambos para atender suas exigências (Stengers, 2001). Entretanto, o século XX foi marcado por inúmeras transformações epistemológicas que, provavelmente, permitiram um resgate da hipnose enquanto tema de reflexão e prática clínica. Em termos de paradigma científico, houve uma espécie de retomada de noções que, de uma posição marginal, passaram a co-habitar com as perspectivas já consagradas e dominantes. Assim, a criação, evocando o antigo livre-arbítrio, passou a conviver mais de perto com a determinação, enquanto o local e singular passaram a fazer frente ao universalismo; a história ganhou terreno junto à eternidade, como também a desordem, a incerteza e o acidente colocaram em cheque as concepções do universo como um relógio perfeito (Santos, 1987). O objeto não pode mais ser concebido sem o sujeito, ao mesmo tempo em que suas fronteiras se tornaram difusas e cederam lugar a um conjunto de conexões que o integram ao contexto e ao tempo. Nessa perspectiva, enquanto a realidade deixou de ser um conjunto de objetos sólidos e definidos, para se constituir em um universo de partículas que retroagem em movimentos complexos, o conhecimento científico passou a incorporar noções antes proscritas como o sujeito, a conexão, a probabilidade, a complexidade, a incerteza e a incompletude (Demo, 1997; Morin, 1990; Stengers, 1995). De um modo geral, é como se houvesse um reconhecimento de que a pretensão de um saber definitivo e absoluto da realidade nunca tenha sido uma questão de realidade, mas de utopia humana. Não é sem razões que esse mesmo século também foi muito fecundo quanto à discussão da dimensão social da ciência no sentido de que sua compreensão não poderia passar distanciada dos processos comuns a uma comunidade científica4 (Kuhn, 1970/1996; Morin, 1991; Santos, 1989; Stengers, 1995). Em meio a esse conjunto de rupturas e subversões, a discussão sobre a hipnose foi inicialmente retomada em termos clínicos, principalmente a partir da obra de Milton H. Erickson5 (Erickson & Rossi, 1980). De certo ponto de vista, essa retomada não apresenta muitas diferenças quanto a alguns de seus ancestrais do magnetismo e da hipnose, pois há uma preocupação explícita com a construção de processos terapêuticos eficientes, uma crítica incisiva quanto às possibilidades da racionalidade científica na abordagem desses fenômenos e um conjunto de medidas rumo a uma institucionalização do movimento6 . Entretanto, de um ponto de vista epistemológico, a obra de Erickson apresenta estreita sintonia com a retomada de noções marginais próprias da crise de paradigma atual (Neubern, 2002), o que talvez possa aproximá-lo, de alguma forma, de concepções hoje discutidas no panorama científico. A princípio, há uma crítica contundente quanto aos pressupostos tradicionais para a construção de uma teoria, pois a generalização e o universalismo que lhes são próprios seriam excludentes com relação à singularidade dos sujeitos, o que esse autor considerava fundamental para a clínica (Erickson & Rossi, 1979; Zeig, 1985/1997). De modo similar, sua visão de homem7 estaria muito mais próxima de uma subjetividade sistêmica e complexa do que das visões tradicionais de objeto de estudo, uma vez que sustentavam a singularidade e as configurações do momento sem se fixarem em conteúdos e etiologias determinadas a priori (Neubern, 2002, 2004). Os problemas dos sujeitos não deveriam ser compreendidos de antemão em função de um conteúdo ou de uma dimensão específica, como o passado, mas em função do conjunto de arranjos próprios de seu cenário subjetivo naquele momento. Em meio a essa visão de homem e de mundo fluida e mutável, pode-se considerar que esse autor não possuía a intenção de associar hipnose e verdade, como se aquela se constituísse em um método privilegiado de acesso a esta (Neubern, 2002, 2004; O'Hanlon, 1987/1994). A complexidade da subjetividade exigiria um conhecimento dinâmico, com conclusões bastante parciais e locais e com um fim pragmático no sentido de levar antes ao desencadeamento de processos do que ao conhecimento ou a confirmação de uma lei ou hipótese. A hipnose, nesse sentido, não estaria associada fielmente à necessidade da explicação objetiva e etiológica, mas a um processo que envolvesse sentidos, padrões e necessidades configurados de modo complexo e próprio ao sujeito, obedecendo a uma organização local (ao invés de universal) e mutável em alguns de seus momentos. Assim, não seria possível esperar que sua obra pudesse desembocar na fabricação de alguns dos arcabouços próprios do paradigma dominante, como por exemplo, a construção de uma teoria de personalidade, embora seja possível considerar que, segundo esse mesmo paradigma, ela possa assumir um caráter eminentemente técnico. Essas considerações trazem à tona as reflexões contundentes que a hipnose sempre trouxe para a psicologia clínica (Stengers, 2001). Sua prática permite conceber que é possível lidar com a mente para transformá-la, sem, contudo, conhece-la segundo as exigências científicas. De um certo modo, essa retomada da hipnose por meio de Milton Erickson (Erickson & Rossi, 1979, 1980) parece retomar a angustiante idéia de que nada mudou, uma vez que ela se constitui em um conhecimento que não traz respostas e que não explica, apesar de sua eficiência clínica e dos espaços institucionais que conquista aos poucos em vários países. Entretanto, mesmo sem respostas, a hipnose é retomada em um outro contexto, um cenário distinto de sua época de nascimento, onde o próprio conhecimento científico é revisto e passa por grandes transformações. Isso leva a conceber que sua importância se dá, não pelas respostas que deixa de trazer, mas pelas perguntas que leva a pensar em diferentes níveis sobre a pretensão de se construir uma psicologia científica (Neubern, 2004; Stengers, 2001). A hipnose, ligada a todo um processo de influência e sugestão, não satisfaria as exigências científicas ou seria o próprio conhecimento científico quem deveria ser revisado e transformado para o estudo da subjetividade humana? A ruptura que ela implica em termos da separação sujeito e objeto8 deveria ser compreendida como um obstáculo ou como apelo a uma nova racionalidade? Quais deveriam ser as condições epistemológicas que uma teoria deveria obedecer para a explicação dos processos subjetivos e hipnóticos? A que condições deveriam obedecer a explicação e a generalização nesse sentido? O tipo de resposta que essas questões receberão ainda está por ser conhecido. Contudo, é importante que essas reflexões sejam levadas a cabo, principalmente em nome do reconhecimento de um tema que justificou uma das origens da psicologia (Carroy, 1991) e que certamente tem muito a dizer sobre seu porvir. O que ficou marcado pela hipnose até o momento é uma transformação que não se permite ser conhecida, que parece jogar com a ciência apontando suas limitações sem se permitir apreender. Mas o que a retomada desse tema neste justo momento parece sugerir é que talvez seja o próprio conhecimento que necessite de mais profundas transformações para poder compreender e explicar esse processo tão altamente implicado com a subjetividade humana.
Conclusão: Por um Conhecimento com Auto- conhecimento
A linha de reflexão desenvolvida até aqui permite uma
analogia entre a situação epistemológica da psicologia clínica quanto à hipnose e a de um paciente que se submete a
uma psicoterapia. Neste caso específico, é muito comum que
o trabalho seja conduzido enfocando algumas questões do
passado do sujeito que ainda permanecem vivas em sua
subjetividade e suas ações sociais e que com freqüência lhe
trazem algum tipo de limitação ou sofrimento. Entretanto,
essa investigação do passado não consiste em um simples
apelo explicativo, mas possui um intento pragmático de
auxiliar o sujeito na reconstrução de significados e sentidos
de dimensões importantes de sua vida, a começar por sua
própria identidade (Gonzalez Rey, 1997; Grandesso, 2000;
Mahoney, 1991). Com o andamento da terapia, não é apenas o passado que ganha novos sentidos, mas a própria relação do sujeito consigo, com seus momentos atuais e suas
projeções futuras.
Essa analogia, por sua vez, parece trazer contradições
bastante incômodas, pois seguindo as inspirações da ciência
moderna (Demo, 1997; McNamme & Gergen, 1995/1998),
a psicologia clínica coloca-se como um conhecimento sem
auto-conhecimento, um conhecimento que se pensa pouco e
está muito mais preocupado em desvendar o mundo que a si
mesmo. O que os psicólogos clínicos propõem diariamente a
seus pacientes em suas práticas não poderia ser pensado e
proposto, em termos epistemológicos, para seus próprios
conhecimentos teóricos. Essa afirmação não visa dizer que a
psicologia clínica atualmente não tenha buscado esse tipo de reflexão, mas que essa tarefa está atrasada (Gonzalez
Rey, 1997) e ainda não pôde contemplar temas cruciais de
sua própria história. Nesse sentido, a hipnose implica em
uma considerável contradição, posto que, possuindo uma
grande importância histórica, clínica e epistemológica para
a psicologia clínica deveria ser atentamente investigada e
problematizada para que a história dessa ciência fosse contada de outra forma, o que, sem dúvidas, poderia apontar
caminhos bastante interessantes para sua transformação.
Contudo, o que se pode notar atualmente é que a hipnose
permanece interditada por um verdadeiro recalque
epistemológico que a impede de tomar parte nessa história,
como se a sua simples presença pudesse implicar no proibido
e no herético em termos de razão, ciência e terapia.
É possível que a conseqüência mais pungente e problemática desse recalque sejam as barreiras que se criaram
para que a psicologia clínica pudesse responder a uma questão fundamental, proferida em termos de identidade científica, que remonta à própria tradição clássica: quem sou eu? De
onde vim? Para onde vou? (Neubern, 2004). Não é sem razões
que sua associação à racionalidade científica tenha ocorrido
dentro de um considerável mal estar, sendo por vezes tida
como um ramo menos científico (e, portanto, mais duvidoso)
da psicologia, como o ramo onde a psique não teria sido
totalmente exorcizada do subjetivo (Gonzalez Rey, 1996;
Neubern, 2003). Em outras palavras, mesmo tendo sido
obrigada a negar sua própria história, onde a hipnose não
foi um mero acidente, a psicologia clínica não conseguiu um
sucesso integral quanto às exigências científicas, como se
tivesse permanecido a meio caminho de atingi-las9
. Embora tenha conquistado espaços sociais e institucionais e tenha acabado por ser reconhecida como um tipo de ciência, o
silêncio imposto sobre sua própria história não impediu sua
angústia epistemológica.
Diante dos problemas práticos da própria clínica
freqüentemente puderam ser constatadas dúvidas constrangedoras basicamente em dois sentidos. Por um lado, se as
possíveis soluções e reflexões devessem ser buscadas a partir da racionalidade científica, haveria um acordo com o
projeto de ciência, mas um incômodo nada desprezível quanto à própria compreensão de um objeto de estudo substancialmente distinto dos objetos relacionados ao método científico tradicional. Essa primeira solução de compromisso,
que não deixou de se constituir em um verdadeiro pesadelo, talvez tenha tido como uma das principais aliadas o uso
da força institucional que mutilou objetos de estudo em sua
complexidade e adequou as teorias a noções universalistas
e reificadas (Gonzalez Rey, 1997; McNamme & Gergen,
1995/1998; Neubern, 2001). Mas, por outro lado, a segunda possibilidade - a de uma racionalidade distinta, envolvendo noções próprias ao universo subjetivo - desembocou, por vezes, em um amplo silêncio, pois não poderia existir outra forma de pensar as origens da psicologia que não fosse por meio das referências já oficializadas e comprometidas com o ideal científico, como no caso de Freud (Chertok
& Stengers, 1999). Não seria nada simples buscar soluções
e reflexões em termos de algo mais original, pois o próprio
universo da subjetividade já havia sofrido um considerável processo de colonização por parte da racionalidade
científica (Santos, 2000)10. Em suma, nesse caso específico o
projeto de ciência foi, desde o início, inconciliável com sua
própria história.
Diante de todo esse quadro, pode-se indagar qual seria a
pertinência para a psicologia clínica de se voltar à reflexão
sobre a hipnose. Por que seria importante retornar a um
tema que parece apresentar muito mais perguntas do que
respostas e cujo progresso em termos de conhecimento foi
praticamente irrisório nos últimos duzentos anos (Stengers,
2001)? Por que seria importante recontar uma história se já
existem histórias? Em que a psicologia clínica poderia enriquecer fazendo esse tipo de reflexão? As respostas a esse
tipo de questão podem ser variadas, mas no escopo desse
artigo, podem ser destacados dois pontos ligando a perspectiva da relação entre clínica e ciência sobre os quais a hipnose incide arduamente.
O primeiro deles é a crítica que ela proporciona à perspectiva de um acesso privilegiado e isomórfico ao real, que
se constituiu em um dos pilares centrais não só do projeto
científico, como das escolas modernas de psicologia clínica
(Gonzalez Rey, 1997; Mahoney, 1991; McNamme &
Gergen, 1995/1998). O que a hipnose parece mostrar nesse sentido, é uma subjetividade humana permeada por processos fugidios, nebulosos e por vezes mutáveis, por processos míticos e simbólicos que remetem diretamente a seu
contexto de geração, como também por toda a cultura que
perpassa esse contexto e a vida dos sujeitos nele implicados. Mas ela os mostra dentro de uma ótica que carece de
confiabilidade tradicional, que não se adequa a pareceres
definitivos e controlados e parecem sugerir uma realidade
muito mais complexa que a realidade perene do paradigma
dominante, por ser marcada pela influência mútua, pela
criação, pelo ilusório e pelo passageiro. Esse primeiro ponto de reflexão sugere que essa ausência de confiabilidade
trazida à tona pela hipnose é integrante constituinte da
subjetividade humana e que por isso não deve ser desprezado sob o pretexto de sua inadequação científica, como o
fez Freud em sua busca pelo definitivo (Chertok & Stengers,
1999). A conseqüência mais imediata nesse sentido é um
forte apelo a uma nova racionalidade, a um novo paradigma
científico em que a noção de realidade seja colocada sob
questão e as noções anteriormente marginais ganhem um
novo espaço11.
Já o segundo ponto refere-se à própria dimensão
institucional da psicologia clínica, mais especificamente à
necessidade de uma concepção reflexiva sobre as ações dos
sujeitos na atribuição de sentido a suas práticas. Um dos
aspectos que chama muito a atenção nesse processo é que a
história passou a ser contada em nome de um triunfo do real,
sem que fossem levantados os vários processos de oposição e
conflito que diversos grupos e instituições moveram contra e
a favor do reconhecimento da hipnose (Carroy, 1991; Chertok
& Stengers, 1999; Meheust, 1999). Em outros termos, ao
mesmo tempo em que se apresentou uma concepção de realidade confiável, esconderam-se os atores que, mais que
seus descobridores, foram seus artífices. Seguindo à perspectiva dominante, eles deveriam ser mantidos na conta de
simples reveladores da realidade psíquica humana para que
a aliança com o paradigma científico fosse efetivada. Assim,
torna-se necessário que as práticas sociais no interior da psicologia clínica sejam repensadas principalmente em termos de conceber que os sujeitos e instituições possuem um
papel ativo na construção de sentido da realidade com a qual
dialogam (Gergen, 1996; Gonzalez Rey, 1997; Neubern,
2004). Essa tarefa não é simples na medida em que o realismo ingênuo que visa desvendar o mundo sem se pensar, mesmo que discutido e criticado epistemologicamente, ainda é
bastante presente nas comunidades dos psicólogos clínicos.
O que talvez a hipnose traga de mais interessante nesse
sentido, é que ela faz uma relação direta entre seu contexto de
geração e seus produtos ao conceber que toda teoria hipnótica é hipnogênica, ou seja, ela gera aquilo que ela mesma
anuncia (Melchior, 1998; Stengers, 2001). Essa perspectiva cria efetivamente um grave problema para a psicologia
clínica particularmente pelas barreiras epistemológicas que
parece romper, a começar por situar a reflexividade como
um processo obrigatório, um processo que se coloque questões sobre seu contexto de surgimento e sobre as retroações
que existem entre os diferentes sujeitos que dele participam. Entretanto, a hipnose parece levar a pensar um pouco
além, tocando de modo inevitável em duas questões cruciais.
Se, em sua prática, as ações humanas geram aquilo que anunciam torna-se obrigatória a reflexão sobre os pressupostos,
valores e concepções implícitos nessa geração, como também sobre as conseqüências pragmáticas de seus resultados. Trata-se aqui de um problema de responsabilidade
ética não só com os sujeitos, mas com o próprio conhecimento que é criador de realidades ou que, ao menos, participa
ativamente nessa criação.
Ela não permite que se espere uma simples revelação do
real, mas convida a uma incursão crítica sobre os pressupostos que antecedem sua construção, o que consiste em uma
tarefa árdua em termos individuais e institucionais. Por
outro lado, esse retorno reflexivo remete ainda a uma questão de utopia, principalmente por abrir a possibilidade de
colocar os sujeitos em uma posição com relativa possibilidade de escolha e autonomia na construção desse conhecimento. Há aqui um problema epistemológico profundo, pois a
própria racionalidade dominante sempre o colocou na posição
de revelador de uma realidade inexorável da qual apenas seria possível sofrer as conseqüências. Se essa utopia remetesse a reflexividade e a possíveis escolhas talvez fosse possível conceber um conhecimento e uma realidade que se
pretende e se deseja, ao invés de simplesmente permanecer
na postura de sofrer suas conseqüências12. Evidentemente,
esse ponto é polêmico e abre debates os mais diversos, inclusive pelo fato de atingir tanto o pressuposto realista como
o da separação entre conhecimento e realidade. Porém, o
que se pode conceber agora é que a retomada da hipnose
está apenas começando e que, portanto, essas questões ainda
estão em aberto.
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Recebido: 25/08/2004
1ª revisão: 15/03/2005
Aceite final: 16/09/2005
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